UFERSA

Não foram discursos, foi suor. Assim nasceu a UFERSA Caraúbas

Por Josivan Barbosa*

“É curioso. Quando chega a hora da fotografia, sobram padrinhos. Mas na hora do parto, quase ninguém quer sentir as dores. Pouco me surpreende quando tentam reescrever a história omitindo nomes e apagando esforços. Mas a verdade é como pedra. Pode ser chutada, escondida ou ignorada, mas permanece no solo onde foi fincada.” — Josivan Barbosa

Na vida pública, há uma prática recorrente que se repete como uma doença silenciosa e crônica — a de apagar seletivamente os participantes e, não raro, verdadeiros protagonistas das histórias. Conquistas coletivas, frutos de esforço de décadas e de muitas mãos, acabam sendo celebradas em solenidades que preferem enaltecer os presentes em detrimento dos que, com suor e persistência, abriram os caminhos. A memória social, manipulada por conveniência, transforma-se em palco seletivo, onde se homenageia quem chega por último e se exclui quem esteve desde o início. É como se a história fosse reescrita a cada cerimônia, numa tentativa de transformar conquistas comunitárias em troféus de gabinete.

A história da UFERSA em Caraúbas não é uma história curta, nem deve ser contada apenas em datas secas ou resoluções burocráticas. É uma trama marcada por disputas, articulações e escolhas políticas que mudaram o destino do Médio Oeste potiguar. Para compreendê-la, é preciso voltar ao início dos anos 2000, quando o Brasil começava a falar em democratizar o acesso ao ensino superior público.

Durante os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, o ensino universitário federal praticamente não se expandiu. Já havia, portanto, uma demanda acumulada de mais de oito anos, com milhares de jovens fora da universidade. Em 2003, com a chegada do governo Lula, o cenário começou a mudar. O Ministério da Educação lançou planos ambiciosos de expansão territorial, prometendo abrir novos campi em cidades médias e regiões esquecidas do mapa acadêmico.

Foi nesse contexto que, em dezembro de 2006, um seminário em Salvador reuniu diversas instituições federais para discutir a “Universidade Nova”. Ali se abriu a janela de oportunidade para a UFERSA — até então restrita a Mossoró — começar a sonhar em chegar a outras partes do Rio Grande do Norte. Logo no início de 2007, uma comissão de professores, entre eles Walter Martins, Milton Morais e José Arimatéa de Matos, foi criada para estruturar propostas. O plano inicial da Reitoria previa três destinos: Pau dos Ferros, Angicos e o Vale do Jaguaribe, em Limoeiro do Norte (Ceará).

Essa ideia, entretanto, rapidamente provocou reações em várias cidades do interior potiguar. Comissões de Assú, Apodi, Caraúbas e Pau dos Ferros começaram a visitar Mossoró, levando prefeitos, vereadores e entidades da sociedade civil para pressionar pela instalação do campus em seus territórios. As visitas se multiplicaram e foram além da Reitoria: houve reuniões com a então governadora Wilma de Faria e mobilizações em praças públicas, como a que ocorreu em Angicos, reunindo parlamentares estaduais e federais. A interiorização da UFERSA se tornava, assim, um movimento político de base, alimentado tanto pela esperança de estudantes quanto pelo cálculo de lideranças locais.

Nesse meio tempo, surgiram também tensões entre Apodi e o Vale do Jaguaribe. Quando se percebeu que Limoeiro do Norte, no Ceará, poderia ser contemplada, o Fórum de Desenvolvimento do Vale do Apodi se organizou e apresentou à bancada federal uma contraproposta: que Apodi tivesse prioridade, em nome do desenvolvimento potiguar. O pleito foi aceito, mas os ventos da política logo mudariam de direção.

A Reitoria, pressionada por prazos e pela escassez de engenheiros e arquitetos, chegou a buscar soluções criativas: tentou adaptar projetos arquitetônicos já prontos da Universidade Federal do Piauí e da Universidade Federal de Campina Grande, para que pudessem ser replicados em solo potiguar. Mas a questão central não era apenas técnica: era política. Para cada campus que se sonhava, seria preciso não apenas dinheiro de obra, mas principalmente o compromisso do MEC de garantir docentes, técnicos e custeio permanente.

Em Brasília, o então secretário de Ensino Superior, Ronaldo Mota, deixou claro: se os parlamentares destinassem recursos de bancada para erguer os prédios, o MEC se responsabilizaria por custear pessoal e manutenção. Foi a senha para uma corrida política, que envolveu deputados federais, senadores e prefeitos.

A negociação atingiu seu ponto decisivo em uma reunião com o ministro da Educação, Fernando Haddad. Ele foi taxativo: não recomendaria campi em Apodi e Pau dos Ferros, pois essas cidades já estavam contempladas com futuros Institutos Federais. Não faria sentido, dizia, duplicar esforços. Essa negativa, que para muitos parecia um obstáculo, abriu uma nova alternativa. Se Apodi não teria campus, qual seria o destino do Médio Oeste? Foi nesse momento que Caraúbas entrou em cena com força.

Com articulação da bancada federal e apoio decisivo do então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, a proposta de Caraúbas ganhou o MEC. A ideia era simples, mas convincente: o campus atenderia o mesmo público regional que Apodi, mas evitaria a sobreposição institucional. Além disso, retardar a decisão poderia significar perder o timing político e, com ele, a chance de consolidar mais uma unidade da UFERSA. A escolha foi estratégica: melhor garantir Caraúbas do que arriscar perder o Médio Oeste inteiro.

Em novembro de 2010, após intensas negociações, o MEC assinou a ata de pactuação para instalação da UFERSA Caraúbas. A decisão gerou protestos em Apodi, mas prevaleceu o argumento de que os jovens do Médio Oeste seriam contemplados de todo modo, já que os municípios estão separados por apenas 30 quilômetros.

A partir desse ponto, a história ganhou outro rumo. Estava decidido: Caraúbas seria sede de um novo campus federal. O que restava agora era o desafio ainda maior — transformar a promessa em realidade, muitas vezes sem a infraestrutura mínima para começar.

Quando o Ministério da Educação finalmente pactuou, em novembro de 2010, a criação do campus da UFERSA em Caraúbas, a vitória não significava que a batalha estava concluída. O anúncio era apenas o início de uma fase ainda mais desafiadora: transformar uma assinatura em Brasília em prédios, cursos, docentes, técnicos e estudantes no sertão potiguar.

O acordo firmado com o MEC foi generoso no papel. Previa a abertura do Bacharelado em Ciência e Tecnologia com 300 vagas anuais, além de cinco cursos de engenharia derivados dele, cada um com 60 vagas. Estavam previstos também cursos de licenciatura para formação de professores, somando outras 100 vagas por ano. No total, o campus teria condições de alcançar 1.900 matrículas anuais quando estivesse em pleno funcionamento. Para isso, seriam nomeados 103 professores e 127 técnicos em educação, além de cargos de direção e funções gratificadas que permitiriam a gestão da nova unidade. O investimento prometido ultrapassava os 35 milhões de reais, sem contar recursos de assistência estudantil e custeio, que somariam quase 15 milhões ao longo dos cinco primeiros anos.

O problema é que nada disso existia em Caraúbas naquele momento. Nem prédios, nem laboratórios, nem biblioteca. Apenas a decisão política. E a universidade precisava escolher entre esperar alguns anos para erguer a estrutura completa ou iniciar de forma improvisada. A Reitoria decidiu não perder tempo: optou por abrir imediatamente os concursos de professores e técnicos já autorizados pelo MEC, mesmo que as aulas precisassem ser ministradas em espaços emprestados.

Assim começou a saga do improviso. Entre 2010 e 2013, o campus de Caraúbas funcionou em escolas públicas da cidade. A Escola Estadual Antônio Carlos, a Escola Municipal Josué de Oliveira e a Escola Estadual Lourenço Gurgel receberam, de forma provisória, estudantes e professores que acreditavam naquele projeto nascente. Era um cenário curioso: jovens que prestaram vestibular para uma universidade federal frequentavam salas de aula ainda com carteiras do ensino básico, enquanto aguardavam a construção da sede definitiva.

A virada ocorreu em maio de 2013, quando a comunidade acadêmica finalmente foi transferida para o novo campus, erguido em um terreno de trinta hectares doado pelo empresário Ademus Ferreira. A mudança representou mais que um simples deslocamento físico. Pela primeira vez, Caraúbas exibia um espaço arquitetônico próprio da UFERSA, com blocos de salas, prédio de laboratórios, setor administrativo e centro de convivência. Meses depois, em 2014, a unidade ganhou também uma biblioteca, consolidando sua identidade universitária.

A expansão prosseguiu em ritmo contínuo. Novos blocos de aulas e laboratórios foram construídos, além de uma residência estudantil com capacidade para 160 alunos. Em seguida, veio o restaurante universitário, símbolo da política de inclusão social, permitindo que jovens de famílias humildes permanecessem na universidade com dignidade.

Os números demonstram a dimensão da transformação. Em 2018, apenas oito anos após a pactuação em Brasília, a UFERSA Caraúbas já reunia 1.366 alunos distribuídos em sete cursos: Ciência e Tecnologia, Engenharias Civil, Mecânica e Elétrica, além das licenciaturas em Letras, com habilitações em Português, Inglês e Libras. O corpo docente somava 111 professores entre efetivos e substitutos, e mais de 50 técnicos administrativos davam suporte às atividades. Era uma comunidade acadêmica robusta, consolidada em pleno semiárido.

O impacto para a região foi imenso. Até o início da década de 1980, o interior do Rio Grande do Norte dispunha de apenas um curso superior — Agronomia, em Mossoró. O sonho de cursar uma universidade era, para a juventude do Médio Oeste, quase uma miragem. A interiorização mudou esse panorama. Jovens de Caraúbas, Apodi, Campo Grande e dezenas de municípios vizinhos passaram a ter acesso a cursos de engenharia e licenciaturas, antes restritos às capitais ou a Mossoró. Para muitas famílias, foi a primeira oportunidade real de ver um filho universitário sem precisar enfrentar a migração forçada.

Não se pode esquecer também o papel político dessa conquista. A bancada federal potiguar da época, composta por oito deputados e três senadores, atuou de maneira incomum: unida em torno do projeto. Parlamentares de diferentes partidos, como Fátima Bezerra, Sandra Rosado e João Maia, aprovaram de forma unânime a destinação de emendas para custear o campus. Esse consenso, raro em Brasília, foi decisivo para garantir a liberação dos recursos pelo MEC.

A UFERSA Caraúbas nasceu, portanto, não de um planejamento frio em gabinete, mas de uma confluência entre demandas sociais, pressões locais, negociações políticas e a ousadia de iniciar atividades sem a infraestrutura pronta. Foi um risco calculado que se mostrou acertado: se a universidade tivesse esperado pela construção definitiva, possivelmente o campus teria demorado ainda mais a existir, ou até se perdido nas idas e vindas da burocracia federal.

Hoje, mais de uma década após sua criação, o campus é uma realidade consolidada. Sua presença modificou a paisagem educacional, movimentou a economia local, valorizou imóveis e gerou novas oportunidades culturais e científicas. Mas, sobretudo, transformou vidas.

Disse Maquiavel que os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda do patrimônio. Mas há algo que nem mesmo o poder pode apagar, que é a verdade de quem esteve lá. A história da UFERSA em Caraúbas prova isso. Uma luta contra o esquecimento ontem, e continuamos a lutar hoje. Mas a verdade, cedo ou tarde, sempre retorna. Quando se olha para trás, o enredo do campus caraubense não é apenas sobre prédios ou cursos, mas sobre a coragem de uma região que se mobilizou para conquistar um pedaço da universidade. Como dizia Dix-huit Rosado, “quem não faz nada por sua terra dificilmente fará por outra”. O campus é a prova viva de que Caraúbas fez — e continua fazendo.

*É Professor e Ex-Reitor da UFERSA.

Este artigo não representa necessariamente a mesma opinião do blog. Se não concorda faça um rebatendo que publicaremos como uma segunda opinião sobre o tema.

Fonte: Blog do Barreto

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