“Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Esse foi o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, divulgado, ainda domingo, 5, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), cujo teor fortalece pesquisa que vem sendo desenvolvida há anos na UFRN.
O trabalho das pesquisadoras Luana Myrrha e Jordana Cristina de Jesus, professoras do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem), tem trazido à luz a discussão sobre o trabalho doméstico não remunerado e o de cuidados.
Somente em 2023, as pesquisadoras movimentaram muito esse assunto. Em fevereiro, Jordana publicou um artigo com larga repercussão relatando a subnotificação desse tipo de trabalho no país. Em maio, ela e Luana apresentaram debate no Pint of Science Natal para um público leigo bastante interessado. Em agosto, Jordana assumiu, a convite do atual governo, o cargo de coordenadora na Coordenadoria de Políticas de Cuidados da Secretaria Nacional de Autonomia Econômica, unidade do Ministério das Mulheres. Já na tarde desta segunda-feira, 6, as pesquisadoras estarão na banca de qualificação de mestrado da estudante Luana Damasceno, que discute o custo do cuidado no contexto de envelhecimento populacional.
Ainda nesta semana, a UFRN sedia, entre os dias 8 e 10, o Encontro Nacional sobre População, Gênero, Raça e Etnia: Transversalidade e Interseccionalidades, com apoio do PPGDem e do Laboratório de Estudos de Gênero e População (Laegep). No evento, haverá uma mesa-redonda com o tema: Famílias, trabalho doméstico e cuidado em perspectiva comparada e realidades singulares, que trata da desigualdade de gênero na divisão do trabalho doméstico e de cuidados ao longo do tempo, bem como entre países com diferentes valores culturais de gênero, níveis de desenvolvimento econômico e políticas de apoio à família. No centro da mesa, estarão as professoras Felícia Picanço (UFRJ), Anna Bárbara Araújo (UFRN) e Luana Myrrha (UFRN). O tema dos cuidados também será abordado em sessões temáticas ao longo do evento.
Reconhecer os cuidados
De acordo com as pesquisadoras, ao colocar uma temática presente no dia a dia da grande maioria das famílias brasileiras para reflexão de milhões de estudantes, seus amigos, familiares e a comunidade de modo mais amplo, o Ministério da Educação, por meio do Enem, realiza um movimento importante, que é o de reconhecer os cuidados. “Reconhecer o trabalho de cuidados executado pelas mulheres é um dos passos iniciais para um caminho de redistribuição dessa carga de trabalho. Para, de fato, redistribuir os trabalhos de cuidados, organizados de maneira injusta na sociedade, eles devem ser transformados em objeto de políticas públicas”, diz Luana Myrrha.
Segundo Jornada Cristina, para essa discussão é relevante, em um primeiro momento, definir o conceito de cuidados. “O cuidado pode ser definido como um trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à sustentação e reprodução da vida humana, da força de trabalho, das sociedades e da economia e à garantia do bem-estar de todas as pessoas. São trabalhos, como a preparação de alimentos, a limpeza, a gestão e a organização da casa, como também as atividades de assistência, apoio e auxílio diários para pessoas com diferentes graus de dependência, como bebês e crianças pequenas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência quando estas não conseguem, sozinhas, realizar atividades como alimentar-se, caminhar, tomar um transporte, fazer compras, etc. Essa é a definição que foi apresentada na primeira versão do Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados do Brasil”, explica.
A pesquisadora acrescenta, ainda, que a construção desse Marco Conceitual é uma das etapas para a elaboração da Política Nacional de Cuidados. Para isso, um grupo de trabalho interministerial foi instituído com a missão de formular um diagnóstico sobre a organização social dos cuidados no Brasil, identificando as políticas, os programas e os serviços já existentes para subsidiar a elaboração de novas políticas sociais mais efetivas.
Desigualdade e envelhecimento
Como ressaltam as professoras, o Brasil tem, atualmente, uma organização social dos cuidados desigual, injusta e insustentável. “Essa organização é desigual e injusta na medida em que, embora os cuidados sejam uma necessidade humana, são as mulheres as principais responsáveis por atender a essa demanda em suas famílias. As mulheres mais sobrecarregadas com esse trabalho invisibilizado são as empobrecidas, as mulheres negras e as que estão em territórios com carências profundas na oferta de serviços públicos de cuidado, como as zonas rurais e as periferias urbanas”, reforçam.
Considerando a tendência de envelhecimento populacional, em que cada vez mais se tem a presença de idosos nas famílias, as cientistas alertam que essa organização é, também, insustentável. “Com mudanças profundas nos papéis das mulheres na sociedade, a anterior extensa oferta de mulheres para os cuidados em seus lares se reprime. A maior presença das mulheres no mercado de trabalho, entretanto, não as exime das responsabilidades com os trabalhos de cuidados, como mostra estudo do IBGE”, reforçam.
Jordana e Luana esclarecem que a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados não remunerado gera o que se nomeia de pobreza de tempo e impõe barreiras para a vida das mulheres, prejudicando suas trajetórias educacionais e profissionais. “Mesmo quando as mulheres possuem algum trabalho remunerado, elas ainda dedicam um tempo aos cuidados, que é 60% maior que o tempo dedicado por homens ocupados”, dizem.
A abordagem desse tema no Enem, continuam as pesquisadoras, acaba indo ao encontro da consulta pública do Governo Federal à sociedade civil, para ouvir a população sobre qual Política Nacional de Cuidados é necessária para garantir o direito ao cuidado e apoiar as famílias brasileiras a cuidar. “Ou seja, esse é um momento histórico que nos permite, enquanto sociedade, dialogar sobre políticas capazes de mitigar as desigualdades estruturais em nossa sociedade, como as de gênero, raça e território”, diz Luana Myrrha.
Mas, afinal, como se transforma o cuidado em objeto de política pública? Jordana Cristina explica que a consulta pública nos convida a pensar em questionamentos importantes. “Como redistribuir a grande carga de trabalho de cuidados não remunerado que a cada dia recai sobre as famílias e, dentro destas, sobre as mulheres? Como valorizar esse tipo de trabalho quando ele é remunerado? Como melhorar as políticas existentes e construir novas políticas para melhorar a vida tanto de quem demanda quanto de quem oferta cuidados?”, completa.
Fonte: Gláucia Lima